Santo António dos Cavaleiros I
02.07.2024.
1 – Habitações ICESA para a Federação das Caixas de Previdência (JCB)
2 – Habitações ICESA, Bairro de São José de Camarate ao fundo (JCB)
3 – Blocos ICESA para o mercado livre (Ana Brandão)
4 – Bairro da Quinta da Caldeira (JCB)
5 – Equipamento pré-fabricado (JCB)
6 – Torres ICESA para o mercado livre (JCB)
7 – Comércio num embasamento de torre (AB)
8 – Praça da primeira fase do empreendimento (JCB)
Chamou-se primeiro Casal dos Cavaleiros, que podia ser nome de lugar ou de quinta. Em meados da década de 1960, quando as quintas e os olivais já não serviam, um primeiro projecto de urbanização chamou-lhe Bairro de Casas de Renda Económica da Ponte de Frielas. Quando construído, chamou-se Santo António dos Cavaleiros, topónimo triunfante que reclamava o antigo nome rural e o apunha ao padroeiro de Lisboa, como se elidisse os 15 minutos de carro que separavam a nova vila da capital, para lá da várzea e da costeira. Mais tarde, com as torres e os blocos pré-fabricados já plenamente habitados, houve quem se envergonhasse da sua suburbanidade de massas acossada de pequenas criminalidades e lhe chamasse Saint Antoine des Chevaliers. Os mais bairristas, alguns dos quais vieram habitar os prédios contíguos da Quinta da Caldeira e da Bela Vista, tomaram-lhe as iniciais e chamaram-lhe SAC, e afirmaram destemidamente Sac é nha ghetto.
A sucessão de nomes reaproveitados e manipulados sugere um lugar mercurial, cujo sentido e a relação com o passado parecem permanentemente em aberto. Santo António dos Cavaleiros excedeu desde o primeiro momento a proposta de bairro económico e constituiu-se como parque residencial, designação algo técnica que denuncia um assentamento de cariz ainda incerto. As casas de renda económica integraram-se assim noutras, pensadas para uma classe-média empregada em Lisboa mas repelida pela algazarra e o congestionamento citadinos.
Santo António dos Cavaleiros – aliás a ICESA, empresa de pré-fabricação que a promoveu – propunha uma forma diferente, absolutamente nova entre nós, de projectar e construir, que começava no plano de urbanização e acabava nos parafusos. Alberto Reaes Pinto, o arquitecto responsável, teve preocupações de ordem prática e técnica em mente ao conceber a vila, as ruas, os edifícios, as habitações. O que não o impediu de criar um conjunto desabridamente moderno e que, nas suas tipologias de renda controlada, se aproxima mesmo do Brutalismo britânico, tão impopular entre lisboetas.
Rodeado entretanto de outros edifícios e mesmo outros conjuntos, o primevo parque residencial da ICESA nunca chegou a cumprir as suas ambições. Foi vila de classe-média, mas os anátemas do meliante e do gandim das ‘casas sociais’, bem como os do dormitório sem vida própria, demoraram décadas a desaparecer ou a desmistificar-se. Foi um subúrbio distinto e quase exemplar, porque poucos têm de facto as suas qualidades paisagísticas, mas algo da sua arquitectura, particularmente a que se destinava ao mercado privado, foi replicado tantas vezes e em tantos lugares que pouco lhe sobra, hoje, de individuante.
A suburbanização massiva em volta de Lisboa com os anos tornou difícil ver, hoje, como era novo, diferente, isto que se propôs nessa encosta entre Loures e Odivelas que nunca nada havia distinguido. Não eram meras torres de 11 pisos ou prédios de 5 pisos, com varandas e quartos espaçosos, era uma Verdadeira Cidade Jardim às portas de Lisboa, um investimento seguro, uma nova maneira de viver que podia pagar-se em mensalidades suaves, uma certeza de felicidade (tudo promessas da publicidade da época). Num país onde pouco se tinha apostado em desenvolvimentos desta ambição, Santo António dos Cavaleiros pertence a uma era optimista, em que se acreditava que a cidade e a arquitectura podiam fazer estas promessas – e, surpreendente! – que podiam cumpri-las. A boa vida, pronta a habitar, com um decorador disponível para ajudar à instalação dos novos residentes-proprietários, com móveis Olaio à disposição, com paisagismo do então jovem Gonçalo Ribeiro Telles a garantir ruas sossegadas e bucólicas, favoráveis às crianças, aos velhos, à convivialidade. Tudo o que a cidade, diziam os pessimistas, não tinha. Mas que podia fazer-se, diziam os optimistas, de raiz.
João Cunha Borges
Researcher | Investigador