Trafaria: do Impedimento à Semana Europeia da Mobilidade
O que é hoje a Trafaria, aliás o centro da Trafaria, é uma grelha mais ou menos ortogonal em que se dispõem edificações, com alguma variedade de usos mas de escala regular, apesar das excepções. Umas de cores pastel e branco, sobretudo os que albergavam as classes menos abastadas, outras revestidas a azulejos com padrões anunciando a chegada do gosto e do dinheiro burgueses. Foi esta a paisagem de fundo das actividades da Semana Europeia da Mobilidade 2024 em Almada que, assinalando o lançamento do Programa de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa, e sob o tema “Espaço Público Partilhado”, propõe uma série de actividades pensadas para que se possa imaginar o que poderia ser um habitat mais sustentável.
A Semana da Mobilidade ocupou o Largo Manuel de Arriaga e uma sequência de lugares adjacentes que, entre si, criam uma pequena rede de espaços públicos. Aqueles que, desde o final do século XIX organizam o centro da Trafaria. Este é também um dos cinco lugares que receberá brevemente uma intervenção promovida através do programa ‘O Meu Bairro’, concebido pelo Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Almada, com o objectivo de qualificar ou requalificar espaços públicos em zonas já habitadas mas onde a esfera colectiva possa ainda ser melhorada, com contributo activo dos cidadãos.
O Largo Manuel de Arriaga tem em volta uma mistura de diferentes tipos de habitação quase sempre modesta, e, ao fundo da rua, em frente dum prédio com poucas décadas, a capela mortuária e o atelier de cerâmica resultam da reutilização de edifícios industriais. O quadrante a leste está ocupado por um jardim, cuja fonte central ostenta nas costas a data de 1948, e na frente o emblema da Câmara Municipal de Almada, enquadrada por dois canteiros e cinco bancos para permanência.
Normalmente, quase todo este largo serve de bolsa de estacionamento. Daqui, pela Rua 5 de Outubro fechada ao trânsito, até ao Largo da República, foram colocadas bancas de venda de legumes e frutas, bolos e salgados, bijuterias e livros, que vão despertando a atenção de pessoas, uma parte das quais parece estar a cumprir a sua rotina normal, indo também ao talho, ao café ou à tabacaria. Painéis montados em estruturas de madeira dão conta das diferentes actividades – Biblioteca Itinerante, jogos de rua, acções de sensibilização, desfiles de colectividades locais, workshops, incluindo um de desenho de paisagem urbana, outro propondo um percurso de bicicleta, outro ainda um percurso a pé, acompanhado por Francisco Silva do Centro Arqueológico de Almada. Tudo enquanto o mercado municipal está em funcionamento, as esplanadas em frente do rio começam a ser preparadas para o almoço e os cafés começam a encher de clientes habituais que entram e comentam um ‘Mistério em Cacilhas’ anunciado na televisão, atirando um deles para o balcão, cujo empregado é claramente um conhecido
_Só podiam ser de Cacilhas…
Comentário que é um testemunho – entre outros ouvidos ao acaso – dum sentido bairrista gerado pelo isolamento, segundo o qual a Trafaria se sente apartada quer de Almada quer da Costa (da Caparica), embora esta última seja, diz-se, quase um ‘colonato’ dos pescadores que daqui se deslocavam para lá e que eventualmente começaram a instalar-se em casas de palhota e colmo em frente do mar da Caparica. Isto, juntamente com a extensão controlada pela topografia, faz do centro da Trafaria uma espécie de vila-bairro, com uma dimensão significativa mas um nível curiosamente alto de integração e unidade.
A topografia deixa a vila quase encurralada entre uma massa de água e uma massa de terra. Há um sentido de isolamento e de auto-contenção que nem as construções que se atrevem pela encosta, nem o arvoredo plantado no final do século XIX conseguem dissipar. Em tempos, o que é hoje a Trafaria era atravessado por uma ribeira, o que haveria de tornar ainda mais drástico esse isolamento. É ali que se constrói, em 1565, o Impedimento cujos barracões e edifícios se localizariam onde hoje fica o emblemático Presídio. Eram ali deixados aqueles que de barco rumavam a Lisboa, em quarentena profilática. As mercadorias, também para desinfecção, eram ali postas a assoalhar antes de seguir para a capital. Pescadores e pequenos funcionários aduaneiros fixaram-se ali, e na Quinta do Danino, doada pelo pároco, os pescadores conseguiram depois erguer a igreja cujas ruínas espreitam hoje, sob as heras, entre uma fábrica de têxteis abandonada e uma correnteza de casas pobres.
Essa é também a altura em que o assentamento começa a ganhar uma função militar, reforçando o seu carácter de posto defensivo do Tejo. Em menos de um século, por ali aguardavam os degredados o seu embarque. Nas Guerras Liberais, a Trafaria começa a surgir como uma espécie de Alcatraz imperfeita, espírito que depois dum interregno no final do século XIX, regressa com a construção, a partir de 1908, do actual edifício do Presídio, cujo uso mais recente foi durante o Processo Revolucionário em Curso.
O uso prisional e também as instalações de Artilharia Um a norte da vila juntaram aos pescadores e funcionários aduaneiros as famílias de militares. As fábricas – de conservas, de explosivos, de guano de peixe – vão trazendo no século XX ainda novos moradores, os proletários. Na Paróquia de São Pedro, a oeste da vila, construiu-se em 1945 o Bairro Madame Faber, por vontade da proprietária da fábrica de explosivos, cujo chalé cor-de-rosa, longe do Bairro mas na mesma rua, tem um belíssimo beiral pintado de verde.
E por fim, num voltface de ‘culturas de território’, com a chegada do barco a vapor e depois dos autocarros da Piedense, Alcatraz torna-se Biarritz: a classificação como estância balnear, o grémio dos banhistas, as colónias de férias, as crianças caridosamente trazidas dos bairros pobres de Lisboa, as famílias de poucas posses que ali iam ao domingo comer caldeirada de peixe formam ainda uma ‘outra’ Trafaria.
A disseminação quase despadronizada dos tipos arquitectónicos por toda a vila parece resultar da simultaneidade de fenómenos sociais, económicos e laborais quase independentes entre si. Havia várias Trafarias a crescer no mesmo lugar, a ritmos desencontrados, criando na vila uma dinâmica definida não só pelo individualismo como por um certo sentido do transitório. Casas de férias são herdadas e passam a permanentes, depois um episódio de partilhas vota-as ao abandono, por fim os fundos de investimento começam a inserir-se. A Filarmónica saiu do seu edifício original e construiu um novo na nova avenida, o Centro Paroquial de São Pedro parece em tempos ter sido uma casa, o Presídio foi um viveiro e será em breve um espaço universitário, a Fábrica de Conservas depois fez-se gare de autocarros, a capitania mudou de sítio, a estação fluvial esteve quase a mudar de sítio mas não mudou.
Esta constante mudança adaptou os edifícios e as ruas às flutuações da demografia e da economia. Já não se pode inculcar à vila um carácter definido em termos de classe social ou de actividade económica: a história local criou uma comunidade diversificada, e com alguma capacidade de abertura ao futuro e à mudança. Contexto fértil, portanto, para experimentar possíveis transformações não ao nível da vida doméstica, mas dos espaços da vida colectiva, onde esta(s) comunidade(s) se encontra(m) e cruza(m).
De facto, a Semana da Mobilidade não foi feita, na Trafaria, num lugar sem vida própria e sem espaços onde a vida pública esteja a acontecer. Assim, as actividades que visavam sensibilizar a população para as vantagens da mobilidade suave, do pedestrianismo e do espaço público não precisaram de atrair (embora também o tenham feito) quem viesse de fora, pois encontraram ali um público disponível e interessado. Poderá uma mudança para uma forma de uso mais sustentável do espaço público, das ruas e das praças ser ‘a próxima Trafaria’ para o século XXI?
João Cunha Borges
Researcher | Investigador