Santo António dos Cavaleiros II
02.07.2024.
1 – Cineteatro, encerrado (JCB)
2 – Praça da primeira fase de urbanização (Ana Brandão)
3 – Praceta num embasamento à entrada da vila (AB)
4 – Espaço de sombreamento (AB)
5 – Passadiço de entrada num prédio das Caixas de Previdência (JCB)
6 – Logradouros em conjunto das Caixas de Previdência (AB)
7 – Campo desportivo na Urbanização de Santo André (JCB)
8 – Multibanco e comércio na cota alta da vila (AB)
9 – Interior de quarteirão apropriado por moradores (AB)
10 – Andar-modelo da ICESA, hoje abandonado (JCB)
Quem chega a Santo António dos Cavaleiros pela N8, no eixo que será reclamado pela nova linha de metro, confronta-se com dois elementos do que normalmente chamamos marcadores de identidade, mas que contêm, entre si, uma contradição. São marcadores distintos, um ali colocado com essa intenção – um brasão para a vila – o outro, podendo ser visto da mesma forma, foi ali colocado com outro propósito inteiramente pragmático. Trata-se do andar-modelo da ICESA, uma réplica dum apartamento-tipo para visitas de interessados e potenciais compradores. Com a falência da empresa, talvez até antes, o protótipo foi encerrado – e assim ficou, na ponta dum dos jardins que enquadram o empreendimento, e onde as pessoas passam no caminho do autocarro ou do café, ou para passear o cão. Ao contrário do brasão, que sugere indirectamente uma velha identidade que não existe – ou, mais propriamente, que não é velha – o andar-modelo põe a descoberto a génese de Santo António dos Cavaleiros, o ideal de negócio e o ideal de vida conciliados – e depois discretamente abandonados, quando a propriedade privada, a gestão urbana e o declínio do optimismo quanto à urbanização pré-fabricada, transformaram a vila num lugar não muito distinto de qualquer outro na cidade extensiva.
É um conjunto de ruas encurvadas encosta acima, pelo meio de um arvoredo mais denso ou menos e com torres e médios algo semelhantes entre si. Muito ao alto, outros conjuntos de edifícios que, sendo de arquitectura diferente, nunca deixam de ser o mesmo – o mesmo ambiente, a mesma vida morna entre edifícios, os mesmos parques de estacionamento, os mesmos jardins humildes e acima de tudo as mesmas pessoas. Poucas, se se estiver num dia semana, e por norma concentradas num ou noutro café, na entrada da creche ou da escola, na praça dos correios – uma referência local – à porta do ginásio, na fila do multibanco. Numa paisagem citadina, a vida nas ruas é marcada pelos ritmos pendulares e pela monotonia da função residencial.
Nos espaços públicos de Santo António dos Cavaleiros convivem mais contradições: as praças e pracetas com estrutura e desenho modernos só muito ao de leve foram vergastados pelos elementos e o envelhecimento, os parques infantis, embora desertos ao fim da manhã, estão bem mantidos, o jardim em volta do lago, peça notável do paisagismo local, criou boas práticas que se prolongam à maioria dos jardins secundários, embora o novo parque urbano não tenha (ainda?) o mesmo fulgor. Mesmo nos logradouros livres entre prédios há árvores frondosas, e a vegetação rasteira ou introduzida pelos moradores dão conta dum solo fértil onde há humidade. Mas a encosta ingreme não é amigável para quem queira caminhar, as ruas serpenteantes privilegiam o automóvel e as ligações entre os vários conjuntos residenciais são feitas de frágeis caminhos e espaços expectantes.
Nos prédios construídos para as Caixas de Previdência, as passagens que ligam as ruas às entradas têm jardins tratados pelos moradores, e a diferença de cotas gerou um subsistema de circulação pedonal, talvez um dos aspectos onde a apropriação dos espaços livres mais concorre para uma qualificação da paisagem. Este subsistema sugere uma noção muito cara ao urbanismo público daquela era, o espaço vicinal, construído através de áreas intersticiais que medeiam entre público e privado, combinando características de ambos: são lugares acessíveis, embora menos imediatos ao passante, mas a acção individual, que selecciona e cuida estrelícias ou begónias ou brincos-de-princesa ou pequenas árvores de fruto, é determinante e claramente visível, como o são os espaços, raros, deixados sem qualquer cuidado.
Os embasamentos das torres das Caixas de Previdência também foram concebidos como espaços vazados de carácter público ou mesmo vicinal. As suas transformações subsequentes são muito variadas, fazendo esquecer que terão começado todos iguais. Poucos mantiveram a forma original de arcada aberta para uma praça. As praças converteram-se em parques de estacionamento, as arcadas foram fechadas e ficaram como espaços comuns da torre, ou arrecadações ou mercearias.
Foi também nos interstícios dos edifícios das Caixas de Previdência que aconteceu a densificação dos anos 2000 – isto é, o preenchimento de áreas livres com mais edificado. São novos prédios que não procuram qualquer compromisso formal com os da ICESA, e talvez isso tenha tido a intenção de quebrar o desenho uniforme e o betão à vista, que poderiam sugerir mais um bairro de habitação social do que uma vila. Mas é mais provável que decorra apenas duma rejeição daquela estética brutalista. Cabe a estes novos edifícios o mérito de ter introduzido uma componente comercial na área alta da vila. Mas se excluirmos a habitual esplanada, o espaço público previsto é limitado: uma praceta entalada entre muros de contenção e um interior livre de quarteirão onde o estacionamento e algumas ocupações de moradores disputam serenamente um espaço pouco qualificado na sua origem.
Os equipamentos e espaços públicos introduzidos pela Câmara Municipal de Loures ao longo dos anos seguem esta mesma lógica de romper com a natureza algo auto-contida do ‘parque residencial’ primevo, que entretanto também já não está isolado, mas rodeado de outras urbanizações, algumas das quais, no discurso dos habitantes, vêm os seus nomes – Quinta da Caldeira, Maria Veleda, Cidade Nova, Bela Vista, Santo André – subsumidos em Santo António dos Cavaleiros, comprovando que são percepcionados e habitados como um todo. E será deste todo, e dos interstícios entre os diferentes fragmentos que o compõem, que qualquer intervenção integradora terá que partir. Gonçalo Ribeiro Telles e Alberto Reaes Pinto deram o mote original, os habitantes souberam elevá-lo. Caberá ao futuro – e a passagem da nova linha do metro abre aqui uma grande oportunidade – tomar tudo o que existe e alcançar o que não foi (ainda) nunca conseguido em Santo António dos Cavaleiros; uma esfera pública vibrante, segura e bela, como se ambicionou desde que as quintas do antigo casal começaram a desaparecer sob fundações e estaleiros de obras.
João Cunha Borges
Researcher | Investigador